segunda-feira, 16 de julho de 2018

Fogo

meu riso é pesado
minha carne é leve
meu corpo é vazio

o gelo do frio
me congela os sentidos,
e um baixo chio estremece
meus pensamentos partidos.

o que sou é mudança, mas
me sinto estátua. a chama enfática e
eufórica que antes me ocupara
doía,
e na ânsia da cura me despi
de qualquer bom calor.
a dor era imensa e
fazia
qualquer sonho converter-se em
cinzas sob a intensidade
de sua chama.

o amor por mim tornou esse calor estranho,
perigoso e vulgar.
deveria ser escondido,
nunca mais ousar
ocupar lugar algum.

hoje, quando o frio faz de sua presença
um fio de navalha que não permite nem
dor, eu respiro a fumaça restante
da alma, para me insuflar
a lembrança do calor.

e quando o coração volta a bater, desperto,
eu tento abraçar o fogo com meus braços abertos
mas o que ele quer não é valentia - essa burra e
vaidosa atitude sem
serventia para além de uma queimadura
e uma história pra contar.
quer coragem para eu não me impedir de procurar
um abrigo contra o frio, pois precisamos calor
e algo para preencher
todos os vazios
formados por nós mesmos.
mas, também,
coragem - essa sim - para não me deixar seduzir
pela potência da chama
que queima e reclama para si
tudo que pode existir. A chama deve ser minha
- e eu dela -
até onde o meu corpo, sábio, permitir.

domingo, 24 de junho de 2018

falar é fácil

os espinhos do peixe eu tiro com a mão
com espinhos da língua eu faço um pirão
tão salgado quanto a pedra do seu coração
com duas pitadas de pimenta
e cabeça de camarão

com o olho esbugalhado eu faço um colar
mas não há utilidade no vazio do seu olhar
que se espelha uma alma, cabe perguntar:
não teme que a desnutrição venha
um dia a te matar?

sirvo o almoço e da janta já me desfiz.
se ninguém come e prefere viver por um triz,
de nada adianta meu esforço infeliz.
fazer comida pra alma é como, no deserto,
construir um chafariz.

a mesa eu desmonto e dela faço igreja
para que todo o mundo desalmado veja
aquilo que ele próprio há muito abandonou
os sonhos ficam à mostra, numa bandeja
e noutra parte ficam fotos dos antigos beijos:
é o templo de tudo que já foi e nunca voltou.
talvez, então, aquele meu sagrado desejo
de alcançar tudo aquilo que eu tanto almejo
colapse e eu perceba que o presente chegou.

sábado, 23 de junho de 2018

resumo da 15ª aula ordinária de 2018

Os dados me dão dores de
cabeça e não cabe qualquer coisa
além das lentas listas
e relvas de irrelevância retidas nos
excertos examinados à exaustão
da mente dos mortos amestrados

O ar que há não dá
para encher nossos vazios-bolhas;
cidades inteiras renegam sentido;
esperança (absoluta) desejada (impossível), entretanto,
impraticáveis automotores desmobilizam
possibilidades emancipadoras. Imaginativos
paralelepípedos proparoxítonam paralelograminhos
Entretenimentose hiperoxidora artificializa
totalissimimamente.

Arcos
Flechas
Espadas
Balas
Gases
Bombas
Gazes
Estilhaços
Telas
Peças
Linhas
Desejos
Comércio
Corpos

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Cronos

conheço um monstro que
se alimenta de momentos bons;
procura só aquilo que pode dar prazer,
para saciar sua fome
que é imensa.

mas quem pensa que comer felicidade
o satisfaz, se engana. Porque o
que ele come não se transforma em vida,
ou em morte,
mas em nada. Ele destrói tudo
que absorve, até que pareça
absurdo supor que aquilo já tenha
existido um dia.

e não se sacia.
come risos, orgasmos, promessas
e não se sacia.
come jogos, filmes, brincadeiras
e não se sacia.
come fogos, ano novo e a Páscoa
e não se sacia.
come passeios a praças e feiras
e não se sacia.
come tudo até que não sobre nada,
e o buraco negro que existe dentro de si
não se satisfaz nem com a destruição total
da existência.
pois sabe que ainda há algo que
teima em existir - sempre sabe.

o monstro, sem nada mais,
se digere pedaço por pedaço.
suas vísceras cedem à fome eterna
do seu íntimo e ele
come cada pedacinho de si próprio,
até que não sobre absolutamente nada
e tudo que já teve vida ou forma
passe a ser zero.

mas a fome persiste.

terça-feira, 10 de abril de 2018

sobre o dia.

não rimar e
remar contra a corrente
é remar contra a corrente

a corrente não me leva
mas me prende

as correntes são leves
mas é difícil me livrar
não sou livre

eu vivo o que é bom, e
o resto eu desvio
mas ainda fica em mim

a face da vida que eu mais
conheço é a troça
é o tom jocoso que está
nos monumentos
(que são lojas,
e as lojas, monumentos)

é a história do sangue e
da guerra que sobrevive às
histórias contadas e à vida vivida
de outras formas

minha vida
não tem forma
porque não foi
feita pra isso.
foi feita para negar,
não para afirmar.
minha vida tem história,
mas ninguém sabe porque
já foi apagada de todos os
lugares.

já foi o luar que nos deu vida;
agora nos mata.
O Sol que bate na janela das oito às dezoito
ou das oito às vinte e duas e quarenta e oito
ou das oito às oito às oito às oito
é açoite.

A noite revela mais que o dia,
que esconde todas as estrelas do céu
para que só uma majestosa brilhe.
Não há majestade.
Há engano. Há chicote. Há troça.

Por isso remo e rimo:
porque se não rimar,
o ritmo do remo se perde
e o rio engole todo meu riso
que recebe essas cenas ridícula
com uma raiva que escapa no haha
dos dentes. Se não escapa,
me prende, e eu não sou
mais leve. Sou pedra.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Atrás?

O monstro que me
persegue - ou sou eu quem o busco? -
é feito de fantasia
ou de qualquer material tosco sobre
o qual não se faz poesia

Não é meu medo nem
minha dor
que servem de base
para o fantasma

O plasma que me perturba é surdo, mudo, cego
e invisível
e portanto nada o atinge

A esfinge me indagou:
"o que é que
sem tato ou mão,
sem pés ou olhos
para lhe dar direção
pode carregar para longe e plastificar sua razão?
Que envolve e afoga sem nunca encostar?
Que fere a fogo sem
nunca queimar?"
E nos olhos-espelho da esfinge,
finalmente à minha frente, eu
vi.

domingo, 12 de novembro de 2017

Tão

Eu estou numa cúpula no meio do céu.
Enxergo o que suas paredes permitem: nada
que não esteja debaixo de meus pés

Eu estou numa cúpula no meio do céu
que não tem nada de citadela nem de purgatório
mas paira sobre tudo sem direção aparente

A cúpula que me engole dentro do céu
tem um domo através do qual nada se vê
mas por baixo de mim
tudo que já há um tempo
perdera sua cor
agora serve de chão, através do qual
eu tudo vejo

Flutuo no tempo e tento
atingir o que meus olhos não vêm
mas não há mais ideias ou sonhos
apenas o que está de imediato.
me envergonho, me calo e me deito
esperando o domo se abrir
para minha mente se ultrapassar
e expandir-se para além do olhar-torre que
me amarra à Terra e torna paraísos impossíveis.

(...)

Mais uma vez me
inebrio de sono e
mais nada.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Trivago


eu não acredito nos sorrisos
eu não acredito na felicidade

eu não acredito na nudez
na paz e na desordem embelezada
eu não acredito no enquadramento ou no
ruído ou na edição
ou na palavra que tudo rouba

eu não acredito no usuário
nem no que ele diz amar
nem no que ele diz curtir
nem no que ele diz que odeia
eu odeio o usuário

não, eu não consigo acreditar na área de trabalho
ou na mesa de desenho
nem no carretel de edições possíveis daquela sua foto excepcional
eu não acredito em nenhuma das cores que tentam me convencer ser azul

eu não acredito nas suas listas
nem nas dos meus amigos
nem nas que eu fiz

eu não acredito em nada que eu faço
ou digo fazer
ou faço parecer que já foi feito

eu não acredito no
mundo inteiro
nem na terra plana
nem na fome
nem no caráter de ninguém

só acredito vendo
por meios i(rre)mediáveis
no imediato
sem impedimento nem imagem

eu não acredito na fotografia,
mas acredito no quadro.

domingo, 24 de setembro de 2017

Dias Ruins I

(esboço)

vai e vem medo e
se apagam motivos
pra esconder os segredos
sobre o que mói meus sorrisos

o dente trai a mente: brilha
enquanto o falado cai ao chão sem
ar

mas paira: próximo à morte na pedra suas
cores vibram como um pensamento-maquiavel:
somente para recordar os
quadros que eu deixei de pintar
a fim de que eu sentisse com toda força a
dor de me escapar o que nunca foi meu

e os sons perturbam toda razão e coerência, a essência já era, o concreto se esfacela contra a parede de tecido feito do maldito-não-dito e de todos os poemas que eu deixei de escrever porque seriam honestos demais

não que a desonestidade seja maldita ou até
evitada
mas mesmo
ela precisa
de algo de verdade
pra servir como não prisão,
liberdade

(fim do esboço)

Dias ruins II

domingos são dias ruins
em que o que era pra ter acabado, recomeça
e faz o recomeçar ser doloroso ou impossível

os dias que dizem inaugurar a semana são vingativos
jogam na cara tudo que não pôde ser
e fazem crer que jamais será

é ruim acordar num domingo de manhã
porque a luz do sol que bate não é convidativa e azul
mas cinza, enclausurada pelo dia que talvez não venha a ser
é cinza
daquilo que nunca chegou a queimar de fato

fotos de experiências que não querem ser contadas
distorcem, malvadas
a vida sumiu

segredos daquilo que todo mundo viu
e que só podem ser ditos
numa mente que se odeia

-
há sol?
essa luz que brilha longe não é uma ilusão que construí?
já que queima, será que faz bem, esse raio?
como alimentar-me de tão pouco por tão longo tempo?
como pude?
-

a depressão é um vazio
que engole tudo que é real
é espetáculo da realeza
insatisfeita com tudo

é quando o cérebro mudo
quer perder também os olhos

o dia mostra a beira
e eu me recordo: que faço eu, senão fingir
que o pôr-do-sol que vem
não tem nada de barreira?
pode vir, pode vir
pois o fim do dia que chega, na verdade
é de uma melódica terça-feira