Korine acordou com
a fria brisa do ar que gelava suas entranhas e fazia as persianas de seu quarto
rebelarem-se contra a própria parede de pedra que as continha.
Desperto, acendeu a
lamparina de óleo à cabeceira de sua cama, uma construção de madeira reforçada
com colchão e almofadas de pena de ganso, e se levantou ao negro da madrugada
que lhe inquietara com suas canções geladas.
Abrindo a porta de
madeira que separava seu quarto do santuário, Korine se pôs a pensar se deveria
realmente visitar a câmara de seu Deus ou se era melhor que voltasse ao seu
sonho, aquele pedaço de desejos manifestados em imagens, único espaço (mesmo
que irreal, sabia) onde podia constituir uma família.
Mas não era
inocente. Sabia suas responsabilidades. Era o último Sacerdote, último servente
de Rhoros, a Vida, e era seu dever dedicar cada segundo a Ele. Ser acordado no meio da noite na verdade fora uma
benção, mesmo sendo estranho seu sono profundo conseguir finalmente ser perturbado,
pois poderia dedicar mais tempo ao Trabalho.
Desceu a escadaria circular de mármore que levava ao
Altar Central, ponderando sobre os reais motivos do seu despertar, pois
lembrava-se que, da última vez em que fora acordado, Rhoros tinha de lhe compartilhar
um recado extremamente importante. Com isso em mente, apressou o passo e a
descida, ansioso, e chegou onde queria, contemplando a grandiosidade extrema
daqueles construtos.
O Altar Central era retesado por um gigante salão, uma
extensa planície de mármore, marfim e pedra, com bancos de madeira distribuídos
simetricamente e uma camada de pó que não era limpa já havia meses, encobrindo
o tapete esmeralda com detalhes em dourado que levava ao Altar, de fato, que
por sua vez impedia a passagem ao Grande Poço.
O Poço era um gigante buraco que, diziam as lendas,
era infinito, e que guardava em suas profundezas o próprio Rhoros, ou assim
ouvira dizer Korine, que pôs-se a observar de fato a construção que retesava
seu real objetivo ali.
De fato, somente um Deus (ou uma centena de escravos)
poderia ter conjugado aquela união de beleza, realismo e realeza que permeava o
Altar Central.
Estátuas de diversas manifestações da Vida, esculpidas
em bronze e pintadas em ouro e prata, cercavam a estante de livros sagrados e o
pódio, onde antigamente os Sacerdotes falavam suas preces, bênçãos e sermões
para uma miríade de pessoas, ou pelo menos assim ouvira dizer Korine.
Uma orquídea esculpida se encontrava no
topo de um tronco de mármore, e Korine retirou uma de suas pétalas, conectadas
à flor dourada por um fio de prata, um mecanismo antigo, porém sofisticado e
útil, que revelava as escadas a caminho da Câmara Sagrada.
Erguendo o alçapão revelado embaixo do tronco que
suportava a orquídea, uma vez mais descia aqueles degraus, para realizar seu
Trabalho. Korine agora se colocaria à disposição de Rhoros, com corpo e mente,
para que seu Deus pudesse obter todo o impulso e dedicação necessários para sua
preservação e eternidade.
Descendo à Dedicação, passava-se a pensar até quando
seria o Sacerdote. Com seus setenta e três anos, Korine se pegava tossindo
sangue antes de dormir, ou até sentia seu gosto pela manhã seguinte, ao
acordar, e suas costelas e coluna já o atormentavam mais do que podia imaginar.
Mesmo assim, se colocava à disposição de Rhoros até
que seus pensamentos não mais pudessem escapar pela boca, e até que seu sangue
não mais pulsasse durante suas veias lotadas de pó, até que escolhesse algum
sucessor, se possível, e, finalmente, para aguardar a chegada do Último, o
Sacro Sacerdote, Aquele Que Existirá Sempre, descansaria nos braços eternos de
Rhoros.
Korine era o último dos Sacerdotes da Vida, escolhido
a partir da Casta. A única diferença entre ele e todos os outros Sacerdotes que
já existiram era o fato de que Korine não tinha nenhum servente, companheiro ou
Sacerdote aliado. Era, realmente, o último. E, como Sacerdote, não poderia
procriar ou fornicar, impossibilitando sequer um filho que o substituísse (era
o único componente da Casta atual, e não podia escolher nenhum sucessor. Isso
se devia tanto ao fato de não haver mais crentes na Vida e, além disso, de
Korine não poder ter tempo para escolher um sucessor, segundo o tanto que
dedicava ao Trabalho).
Chegando à Câmara, se ajoelhou e rezou as preces.
Durante o processo, observou o cômodo quadriculado e lotado de tijolos de
pedra, pequeno e sufocante, mas que trazia a si a calma e a concentração
necessária para entregar-se a Rhoros. Vendo o recanto acinzentado, se pôs à
sincronia da Vida.
Korine lembrava-se de seus desejos carnais e
absolutos. Além de lembrar-se dos sonhos de ter família, com uma esposa que o
amava todas as noites (nos quartos, banheiros e em situações espontâneas),
também sentia a memória de todos os seres. Era capaz de absorver as emoções e
situações que todos os tocados pela Vida sentiam, e era seu dever executar a
manutenção dos Vivos.
O fazia ao entrar em sincronia com suas
Essências, fazendo o possível para livrá-los de auras negativas e doenças
espirituais, as quais frequentemente levavam a tormentos físicos e
psicológicos. Mas, sendo somente um em uma função onde centenas eram
necessários (e, antes, presentes), Korine não era capaz de regular todos os
Vivos. Por mais que já houvesse desenvolvido, pela experiência, exóticas técnicas
da Expurgação e da Sincronia ao longo dos seus cinquenta e cinco anos de
serviços sacros, infelizmente quando excedia uma dezena de Expurgações já se
encontrava extremamente exausto e cansado. Mas sempre valia à pena.
Enquanto se punha à disposição de Rhoros, Korine pôde
sincronizar-se com um pequeno camponês chamado Hughe, que com seus oito anos já
sofria extremos abusos internos. Hughe vivia debaixo de pontes no sul da
Capital, com seus pais e dezenas de necessitados, na Baixada Carente. Korine já
havia transitado a Baixada quando ainda era um Sacerdote novo, isento de um
excesso de deveres que agora já visualizava como rotina, e possuinte de uma
jovialidade e esperança de catalisar o mundo e a pobreza. Não que houvesse de
fato abandonado essa ambição, claro, mas não mais optava pelos meios físicos
para obter seus fins, visto que seu tempo não estava mais à sua própria
disposição (e sim à de Rhoros) e, além disso, já podia fazer mais diferença com
o Trabalho do que jamais conseguiria pulando cercas e enfrentando guardas.
Hughe acabara de acordar para se banhar no rio, uma
corrente de esgoto e dejetos que deixaria o mais sujo dos ratos enojados e com
uma sensação de limpeza e asseio próprio. A criança detestava isso, Korine
podia sentir. Aquele ódio iria se transformar em alguma tosse ou virose
complicada, eventualmente. Korine retirou-o para curar seu espírito, afinal não
iria sair daquelas condições sanitárias tão cedo, parecia. Mais fácil seria se
conformar com o fedor e a sujeira, fazer parte deles até, antes de se
martirizar pela situação horrorosa sob a qual se encontrava.
Após seu conturbado banho, se poderia ser chamado de
tal, Hughe vestiu de volta seus trapos e pôs-se a caminhar às padarias, para
mendigar trocados e pães velhos, amassados e até estragados, se necessário. Já
havia mais de dois dias que não se alimentava sem ser com ratos ou alguma coisa
proveniente daquelas águas imundas.
Assim, Korine tirou de Hughes, também, o desgosto,
proveniente das precárias condições onde se encontrava. Se continuasse assim,
Hughes seria um Vivo mais bem preparado para aquela Vida que acabara tomando do
que muitos dos adultos ali presentes.
Sentindo seu Trabalho, ali, concluído,
Korine retirou os esforços à Expurgação e começou a meditar para reaver sua
Essência.
Ao ponderar sobre sua própria vida, se percebeu
retirado de todos os males espirituais. Korine respirava uma pureza quase digna
de um deus, e era o último elo entre os planos terrestres e Rhoros. Pensando
nisso, tentou, novamente, além da centésima vez, comunicar-se com Rhoros.
Aqueles esforços sugavam sua Essência, pois se punha a
comunicar-se com toda a energia terrestre, o que também definitivamente afetava
os Vivos, fazendo com que Korine, no futuro, apenas tivesse de trabalhar ainda
mais. Mesmo assim, vibrava entre os ares e as respirações e transpirações
terrenas, esvaia-se de sua própria existência e oscilava entre manifestações
materiais e etéreas, para que atingisse a Iluminação Máxima. Com ela, sabia,
obteria a comunicação de fato com Rhoros, podendo então descobrir tudo sobre si
mesmo e sobre a Existência.
Foi então que sentiu.
Como se as suas próprias entranhas conspirassem contra
si, Korine sentiu-se como as persianas que batiam violentamente contra as
paredes que a continham. Não continha a si mesmo, nem sentia o que antes
existia em seu ser interno. Só ouvia uma voz:
- Korine, certo? Tenho convicção que esse seja o nome
pelo qual lhe chamam. Saiba que seu despertar não foi em vão. E não digo sua
conexão com meus planos, nem profiro uma metáfora sobre seu domínio à Essência,
não. Digo que, hoje, não acordara por coincidência. Tenha em mente que aqui lhe
trouxe para que entendesse. Entendesse que há e haverá muitos Hughes. Confio em
seu ceticismo e experiência, fatores que não deixam que abra espaço a nenhuma
espécie de inocência, mas também temo.
“Temo que você seja, de fato, meu último Sacerdote.
Minha última missão, meu último elo, meu último Servidor. Minha última
esperança. E não digo ‘esperança’ de alguma forma leve, não. Tenho em mente o
que isso implica. E espero que você também tenha. Tenha ciência e certeza de
que é e será o Último. E sabe o que isso significa, Korine.
“Significa que agora é seu o dom e o dever da vida
eterna. Que será, até o fim de nossa existência, aquilo que rege os Vivos na
Terra, realizando o Trabalho com todos os seres existentes em todo o
espaço-tempo.
“Por tudo que já fez, agradeço, e
parabenizo-o por se mostrar digno de ocupar o lugar de meu último real
Servente. Sim, será solitário, como sabemos, mas valerá à pena até que chegue o
dia quando nenhum Vivo jamais passe necessidades psicológicas ou físicas. Seu
trabalho apenas começou.”
Sentindo uma pureza invadir seus pulmões e sua própria
vida, Korine se pôs a ponderar sobre tudo aquilo e sobre até onde iria
conseguir levar o Legado de Rhoros, uma vez abençoado com a Eternidade. Era o
Último, Aquele Que Existirá Sempre, a última instância entre os planos da Terra
e de Rhoros.
Assim, levantou-se da Câmara e se pôs a subir ao Altar
Central. Passava os degraus como um homem morto, pisando na pedra e no mármore
como se lá contivessem seus próprios sonhos. Agora, com a imortalidade, viveria
uma lembrança eterna enquanto sentiria saudades de uma época pela qual nunca
passara ou passaria: onde uma família e filhos podiam ser uma realidade,
tangível e factível.
Chegando ao altar, ponderava: até que ponto seu
trabalho era, de fato, importante? Até que ponto já deveria deixar de
interferir tanto nas Vidas? Já não era tempo de todos tocarem seu próprio
Universo sem que Sacerdotes ou entidades se colocassem acima, manufaturando
emoções e impulsos que não eram verdadeiros, de fato?
“Por quê?”, era o que passava por sua mente de modo
tão frequente que até se estranhava.
Deveria rezar e meditar, se concentrar em tudo e em
nada, em si mesmo e na Essência. Sentir a Vida e fazê-la senti-lo, encontrar a
Iluminação.
Caminhando ao Poço, jogou uma moeda no buraco eterno
para que Rhoros o respondesse: era assim tão valioso seu Trabalho? Deveria
viver para sempre para realiza-lo, por um simples capricho de um Deus egoísta
que desejava ser adorado e amado? Por uma rasgada lembrança de algo bom ou
puro, que na verdade era uma ilusão trazida por seus próprios serventes?
E pulou.
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